Se numa noite de inverno um viajante

 10th April 2024 at 5:42pm

[read in Portuguese, thus notes will be in Portuguese]

HĂĄ muito tempo que ouço falar do Calvino e desta obra em particular, que era apresentada como participante do espectro pĂłs-modernista da literatura fragmentada e auto-referencial. Confirma-se! É uma leitura confusa e frenĂ©tica, ciente de e dedicada Ă  sua forma de romance.

Fez-me recordar o A Vida: Modo de usar de Perec, e muito dos temas e estilo de Jorge Luis Borges — coisas como A Biblioteca de Babel, as suas ideias sobre infinitas variaçÔes de um tema... (aparentemente, Borges Ă© uma confessa influĂȘncia) —; o prĂłprio Gödel, Escher, Bach toca nisto.

Como foi lido num livro a sĂ©rio — os de papel! (e seria irĂłnico fazĂȘ-lo doutra forma) — tenho citaçÔes ainda por transcrever.

— Escuta, os grupos de trabalho são muitos, a biblioteca do Instituto erulo-altaico tinha apenas um exemplar; então dividimo-lo, foi uma partilha um pouco disputada, o livro ficou em pedaços, mas estou convencida de que conquistei o pedaço melhor.

Atira o livro contra o pavimento, lançå-lo-ias pela janela fora, mesmo com a janela fechada, atravĂ©s das ripas das persianas de enrolar, que trituram os seus incongruentes cadernos, as frases as palavras os morfemas os fonemas esguicham sem se poderem mais recompor em discurso; atravĂ©s dos vidros, se forem vidros inquebrĂĄveis melhor ainda, arremessar o livro reduzido a fotĂ”es, vibraçÔes ondulatĂłrias, aspectos polarizados; atravĂ©s da parede, que o livro se esmigalhe em molĂ©culas e ĂĄtomos passando entre ĂĄtomos e ĂĄtomos do cimento armado, decompondo-se em electrĂ”es neutrĂ”es neutrinos partĂ­culas elementares cada vez mais minĂșsculas; atravĂ©s dos fios do telefone, que se reduza a impulsos electrĂłnicos, em fluxo de informação, sacudido por redundĂąncias e ruĂ­dos e se degrade numa vertiginosa entropia. Querias atirĂĄ-lo para fora de casa, para fora do quarteirĂŁo, para fora do bairro, para fora do aglomerado urbano, para fora do ordenamento territorial, para fora da administração regional, para fora da comunidade nacional, para fora do mercado comum, para fora da cultura ocidental, para fora da plataforma continental, da atmosfera, da biosfera, da estratosfera, do campo gravitacional, do sistema solar, da galĂĄxia, do cĂșmulo de galĂĄxias, conseguir atirĂĄ-lo para lĂĄ do ponto a que as galĂĄxias chegaram na sua expansĂŁo, lĂĄ onde o espaço-tempo nĂŁo chegou ainda, onde o acolheria o nĂŁo-ser, onde mesmo o nĂŁo ser nunca nunca esteve nem antes nem depois, para se perder na mais absoluta negatividade garantida inegĂĄvel. Precisamente como merece, nem mais nem menos.

— E porque Ă© que tu nĂŁo queres vir?. — Por princĂ­pio. — Que queres dizer? — HĂĄ uma linha de demarcação: de um lado estĂŁo aqueles que fazem os livros, do outro os que os lĂȘem. Eu quero continuar uma daquelas que lĂȘ, portanto faço por me manter sempre para cĂĄ dessa linha. Se nĂŁo, o prazer desinteressado de ler acaba, ou pelo menos transforma-se numa outra coisa, que nĂŁo Ă© aquilo que eu quero. É uma linha de demarcação aproximada, que tende a desvanecer-se: o mundo dos que se ocupam profissionalmente de livros estĂĄ cada vez mais povoado e tende a identificar-se com o mundo dos leitores. É verdade que tambĂ©m os leitores sĂŁo cada vez mais numerosos, mas dir-se-ia que os que usam os livros para produzirem outros livros crescem mais do que aqueles que gostam de ler os livros e nada mais. Sei que se transponho essa fronteira, mesmo ocasionalmente, por simples acaso, corro o risco de me confundir com esta marĂ© que avança, por isso me recuso a pĂŽr os pĂ©s numa editora, ainda que por pouco tempo.

TitleSe numa noite de inverno um viajante
AuthorItalo Calvino
PublisherVega | ProvisĂłrios e Definitivos