[read in Portuguese, thus notes will be in Portuguese]
Há muito tempo que ouço falar do Calvino e desta obra em particular, que era apresentada como participante do espectro pós-modernista da literatura fragmentada e auto-referencial. Confirma-se! É uma leitura confusa e frenética, ciente de e dedicada à sua forma de romance.
Fez-me recordar o A Vida: Modo de usar de Perec, e muito dos temas e estilo de Jorge Luis Borges — coisas como A Biblioteca de Babel, as suas ideias sobre infinitas variações de um tema... (aparentemente, Borges é uma confessa influência) —; o próprio Gödel, Escher, Bach toca nisto.
Como foi lido num livro a sério — os de papel! (e seria irónico fazê-lo doutra forma) — tenho citações ainda por transcrever.
— Escuta, os grupos de trabalho são muitos, a biblioteca do Instituto erulo-altaico tinha apenas um exemplar; então dividimo-lo, foi uma partilha um pouco disputada, o livro ficou em pedaços, mas estou convencida de que conquistei o pedaço melhor.
Atira o livro contra o pavimento, lançá-lo-ias pela janela fora, mesmo com a janela fechada, atravĂ©s das ripas das persianas de enrolar, que trituram os seus incongruentes cadernos, as frases as palavras os morfemas os fonemas esguicham sem se poderem mais recompor em discurso; atravĂ©s dos vidros, se forem vidros inquebráveis melhor ainda, arremessar o livro reduzido a fotões, vibrações ondulatĂłrias, aspectos polarizados; atravĂ©s da parede, que o livro se esmigalhe em molĂ©culas e átomos passando entre átomos e átomos do cimento armado, decompondo-se em electrões neutrões neutrinos partĂculas elementares cada vez mais minĂşsculas; atravĂ©s dos fios do telefone, que se reduza a impulsos electrĂłnicos, em fluxo de informação, sacudido por redundâncias e ruĂdos e se degrade numa vertiginosa entropia. Querias atirá-lo para fora de casa, para fora do quarteirĂŁo, para fora do bairro, para fora do aglomerado urbano, para fora do ordenamento territorial, para fora da administração regional, para fora da comunidade nacional, para fora do mercado comum, para fora da cultura ocidental, para fora da plataforma continental, da atmosfera, da biosfera, da estratosfera, do campo gravitacional, do sistema solar, da galáxia, do cĂşmulo de galáxias, conseguir atirá-lo para lá do ponto a que as galáxias chegaram na sua expansĂŁo, lá onde o espaço-tempo nĂŁo chegou ainda, onde o acolheria o nĂŁo-ser, onde mesmo o nĂŁo ser nunca nunca esteve nem antes nem depois, para se perder na mais absoluta negatividade garantida inegável. Precisamente como merece, nem mais nem menos.
— E porque Ă© que tu nĂŁo queres vir?. — Por princĂpio. — Que queres dizer? — Há uma linha de demarcação: de um lado estĂŁo aqueles que fazem os livros, do outro os que os lĂŞem. Eu quero continuar uma daquelas que lĂŞ, portanto faço por me manter sempre para cá dessa linha. Se nĂŁo, o prazer desinteressado de ler acaba, ou pelo menos transforma-se numa outra coisa, que nĂŁo Ă© aquilo que eu quero. É uma linha de demarcação aproximada, que tende a desvanecer-se: o mundo dos que se ocupam profissionalmente de livros está cada vez mais povoado e tende a identificar-se com o mundo dos leitores. É verdade que tambĂ©m os leitores sĂŁo cada vez mais numerosos, mas dir-se-ia que os que usam os livros para produzirem outros livros crescem mais do que aqueles que gostam de ler os livros e nada mais. Sei que se transponho essa fronteira, mesmo ocasionalmente, por simples acaso, corro o risco de me confundir com esta marĂ© que avança, por isso me recuso a pĂ´r os pĂ©s numa editora, ainda que por pouco tempo.
Title | Se numa noite de inverno um viajante |
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Author | Italo Calvino |
Publisher | Vega | ProvisĂłrios e Definitivos |